Setembro 25, 2017
Fernando Zocca
Ele já passara dos 60 e ela dos 80 anos. Os cabelos brancos deles ali refletidos na janela do restaurante davam a noção daquela espécie de amor platônico.
O velhote obeso degustava uma Coca-Cola light, mas ela, aparentemente alheia ao mundo que os rodeava, equilibrando os óculos de aros delgados no narigão adunco segurava com certa elegância, a bengala fina.
Eles praticamente já não tinham mais assuntos com que pudessem entreter-se. Por isso ambos olhavam, quase sem ver, as pessoas que entravam e saiam do salão tomado pelo burburinho.
O pacto que ele fizera há muitos e muitos anos, com os céus, em troca da serenidade da sua consciência, fora de que cuidaria dela até os últimos dias das suas vidas.
Então, mesmo sem nada ganhar o velho a acompanhava por todos os lugares por onde ela desejasse ir. O pagamento das despesas vinha dos proventos que o marido dela deixara em decorrência da morte.
Mas naquela tarde, ali no restaurante ocupando solenemente a mesa e observando o movimento, ambos deixaram, por alguns instantes, de focalizar a inevitável e preocupante ciência do embarangamento geral das próprias constituições corpóreas.
As pelancas dos braços dela, a barriga flácida e proeminente dele, os dentes de ambos corroídos pela saliva quase secular, amarelados e disformes, noticiavam que momentos tristes posteriores à longa senectude, não tardariam.
Mas eis que, atravessando a membrana imaginária envolvente do casal silencioso, surge a exuberância duma loura graciosa. E quando a moça falava, ele, ao tentar responder, não o fazia com a certeza, nem a segurança absoluta, mas sim com o vergonhoso temor que lhe faziam emergir, os olhares desconfiados e ciumentos da antiga senhora.
A moça, certamente, por mais que tentasse, jamais quebraria o elo que os vinculava.
Ela, a lourinha ingênua sabia que eram mãe e filho único. Mas não tinha a menor noção de que, quarenta anos atrás o agora ancião, diante dum bate-boca comum entre mãe e pai, desesperando-se, e tomando as dores da mamãe, avançara contra o progenitor matando-o com uma garrafada.
Freud rotularia e arquivaria o caso como sendo um legítimo e abafadíssimo processo de Édipo Rei.
Aos parentes e vizinhos a versão vigente, até os dias atuais, foi a de que o velho cirurgião dentista, embriagando-se mais uma vez, chegara da rua tão bêbado que, perdendo o equilíbrio, precipitara-se contra o solo tendo morte instantânea.
É claro que os mexeriqueiros, com aquelas línguas incontroláveis, não deixaram de espalhar que partilhar o apartamento com o velhote ocorreria somente depois do passamento natural da antiga e respeitosa senhora. E isso, meu amigo, certamente, não ocorreria sem antes o transcurso dum longo e demorado passar do tempo.