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Uma vez, desconsiderando o estado lamentável de conservação da maioria das calçadas tupinambiquences Van de Oliveira Grogue, no final da tarde, duma sexta-feira qualquer, usando um velho par de chinelos, caminhando descontraidamente como sempre, pro bar do Bafão, em certa altura do caminho, pisando num buraco e sofrendo uma topada violenta, fez levantar do dedão do pé direito uma lapa imensa que deixou, na vizinhança da unha, um ferimento doloridíssimo.
No pronto socorro do bairro o curativo eficiente amenizou seu sofrimento, mas como lhe foi muito difícil andar com tanto desconforto sugeriram-lhe o uso duma bengala.
Desta forma, depois de alguns dias ele apareceu, valendo-se de um bastão de apoio, no botequim famoso.
- Eh, Van hein! – provocou Abdo Minnal apontando, com o queixo, o instrumento – deixa eu dar uma voltinha com ela?
- Você não sabe o que é sofrimento – respondeu Oliveira – dói-me a perna toda.
- Também, você é muito burro. Como pode andar de cabeça erguida numa cidade como essa? É mesmo ser muito besta desatentar para os buracos e os cocôs dos animais espalhados pelas calçadas – afirmou Abdo afastando-se em busca da cerveja antes posta sobre o tampo do freezer pelo comerciante.
Amuado Van sentou-se a mesa encostada numa parede defronte ao balcão. Abriu o Jornal de Tupinambicas das Linhas e uma matéria chamou-lhe a atenção:
“Naquela casa, que parecia ser normal, habitavam seres muito esquisitos. Havia gay, menores, prostituta, desocupados e gente violenta. Depois que puseram dentro da garagem da casa um trole, uma espécie de carroça, com os varais encostados na parede parece que aquele sentido de bom senso desapareceu completamente. Ouvia-se à boca pequena que o padrasto abusava sexualmente do menino e da menina, filhos da mulher que viera morar naquele lugar; ela não denunciava as sacanagens ao ministério público por medo de ser despedida, por não ter para onde ir. Desta forma, por omissão, consentia que o amásio se aproveitasse sexualmente da ingenuidade e desamparo dos menores.
“O doutor delegado da comarca já sabia das ocorrências e mandara elaborar um estudo feito por um especialista da polícia. O documento vinha expresso desta maneira: a mulher que hoje mora naquela casa, quando menina era catadora de recicláveis. Dessa atividade, depois de maiorzinha passou a se prostituir pelas ruas do bairro. Assistentes sociais e psicólogos a encaminharam para os serviços de ambulante no terminal rodoviário da região central da cidade onde ela trabalhou por algum tempo. Com dois filhos para criar, surgiu-lhe pela frente o mancebo que com ela vive hoje maritalmente. A mãe dessa mulher, avó das crianças, é uma senhora visivelmente virilizada que mantinha o costume de andar pelas ruas do bairro onde também recolhia o lixo que levava pra casa.
“Um dos vizinhos daquela gente descreveu assim a situação: Da mesma forma que o tumor maligno devolve humores nocivos em troca dos nutrientes e oxigênio da perfusão sanguínea que o alimenta, Donizete Pimenta, Zé Laburka, Delsinho Espiroqueta e Dani Arruela, residentes naquele conhecidíssimo endereço, cortiço notório, cabeça-de-porco bem antigo, devolvem com o mal as bondades que recebem das pessoas caridosas da comunidade”.
Entretidíssimo com a leitura Van Grogue não percebeu que dele se aproximava Hein Hiquedemorais o mais astuto, esperto, vivaz e operoso contabilista tupinambiquence.
Com a costa da mão esquerda Hein Hiquedemorais tentou secar o filete de saliva que teimava em lhe escorrer pelo canto direito da boca.
- E aí, seu Grogue? Sarou o dedão? – indagou Hein enquanto acomodava-se a uma mesa vizinha.
“Ih, rapaz! Lá vem aquele chato” - pensou Grogue.
- Estou quase bom. Negadinha do pronto socorro botou bastante mertiolate no arranhão. Tiraram até raios-X – respondeu Van de Oliveira – É verdade que o senhor só anda de carro importado e bebe vinho selecionado?
- Mas que nada, meu filho. O papai aqui está com uma dor dos infernos nos intestinos. Não posso nem pensar em soltar pum. Não sei se vem coisa mais sólida ou liquida pelos fundos. Na dúvida fico assim meio que com a barriga inchada.
“Praga de cretino, cai no próprio intestino” – pensou Grogue em silêncio.
Van preparava uma resposta quando defronte ao bar passavam vagarosamente duas senhoras obesas de braços dados; elas conversavam em voz baixa:
- Mas você ainda usa o secador de cabelos na xereca, minha filha?
- Tenho horror de me vestir assim, com a pele úmida, depois do banho – respondeu a outra.
Quando as duas estavam bem defronte ao boteco uma delas cochichou depois de olhar o pessoal que lá dentro bebericava:
- A alegria desses retardados é que todos sejam iguais a eles. Com certeza ou é isso mesmo, comadre?
- Com certeza querida. Mas acelera. Acelera o passo que não quero ser vista perto desse ambiente. Antes pobre sóbria do que rica alcoólatra.
Abdo que lá do fundo acompanhou a passagem das idosas, tendo ouvido o comentário de uma delas, falou em voz alta para que ouvissem:
- Aqui é assim!
As velhinhas que se afastavam não deixaram de revidar; em uníssono responderam:
- No hospício também, sua múmia!
Depois que Hein Hiquedemorais sentou-se, enchendo o copo de cerveja notou que certa calma baixou no ambiente.
Grogue continuou então a leitura da matéria do Jornal de Tupinambicas das Linhas que comentava sobre a tal casa velha dos orates.
“Diziam alguns vizinhos e gente da família que o tal Donizete Pimenta, na verdade um incubo maligno, pra que não dissessem ser ele um veado mequetrefe, tinha de provar a sua macheza copulando com várias mulheres, mesmo que fossem elas da própria família, ou que precisasse usar a força.”
Célio Justinho, tendo deixado Luiza Fernanda parada na porta do boteco, entrou agitando no ar os braços e falando em voz alta:
- Nem que eu fosse gerente do banco ou de loja teria coragem pra deixar alguém fazer essa maldade que presencio todos os dias.
- O que acontece nobilíssimo freguês? Deram-lhe outra nota falsa de 50? – questionou Bafão.
- Não é nada disso – Célio pensava na insistência de Luiza Fernanda em aprender a dedilhar o teclado sem ter qualquer noção de música, mas não tocou no assunto.
- Eu quero meu maço de cigarros, uma dúzia de cerveja em lata, carvão, mortadela, seis filõezinhos e aqueles tampões de ouvido ali da vitrine – ordenou Justinho.
Hein Hiquedemorais achou que conhecia aquelas pessoas. Bebericando um gole mais avantajado de cerveja ele pensou:
“Parece que conheço essa gente. Um deles, se não me engano, é gerente de banco. O outro apontador do jogo do bicho. Não me recordo bem...”
Enquanto bebiam e conversavam o tempo passava célere. Logo aqueles habitantes da cidade retornariam para suas casas. Levariam a impressão de que durante a madrugada tudo silenciaria. Mas muitos, entretanto, achavam que não seria bem assim.