Dezembro 30, 2019
Fernando Zocca
- Seu Hein Hiquedemorais qual é a origem do seu nome? – indagou o curiosíssimo Van Grogue – no início da noite daquela sexta-feira, no salão de festas do condomínio, durante a reunião comemorativa de fim de ano.
- Alemão, italiano, português e Francês. Mas tem um pouco de baiano também – respondeu o contador idoso, limpando com a mão esquerda, o filete da baba que lhe escorria pelo canto direito da boca; no ambiente, num volume bastante elevado Roy Orbison (foto) entoava Oh, Pretty Woman.
- Quando o senhor acorda, logo de manhãzinha, também desperta atordoado, feito bebum que passou a noite inteira de Natal encachaçando-se? – quis saber Célio Justinho, o gerente bancário empolgado com a presença do amigão que não via há muito tempo.
- Você sabe que... Na verdade... Veja bem... Quando acordo estou tão zonzo, mesmo sem ter bebido nada, durante o dia anterior, que me atrapalho todo. Hoje por exemplo, qual não foi o meu susto, a minha surpresa, ao esbarrar no celular, fazendo-o precipitar-se dentro do penico. Olha só o prejuízo!
- Engraçado, quando seu Hein fala, ele geralmente não olha nos olhos do interlocutor – observou Delsinho Espiroqueta ao cutucar com o cotovelo esquerdo as costelas do Zé Laburka. Eles ocupavam uma mesa no centro do salão; bebericavam rabo de galo e cerveja.
- E lá sou eu cobra pra ficar olhando os olhos do sapo seu menino? – respondeu Hein que de longe pode ouvir o comentário do Delsinho delicado.
- Ai, que “veio” chato, meu Deus! – disse Delsinho bastante irritado com a fleuma do idoso.
- Mas... Como ia dizendo... – continuou Hein dirigindo-se ao Van Grogue – os cretinos de um quarteirão causam muitas desordens por terem dificuldades em distinguir coisas com alguns elementos comuns. Por exemplo: a deficiência intelectual não lhes permite diferenciar entre o Parque da Ressurreição (cemitério) e os parques da área de lazer. Isso gera muito desconforto e agitação nos tais. Alimentam os murmúrios dos insanos as informações colhidas no lixo dos vizinhos, as referências aos alimentos comprados no comércio local e nos acontecimentos do dia-a-dia das vítimas do assédio.
- Olha só, seu Hein: sua baba tem bolhas! Não é bonito isso? – observou Kol da Mumunha quando, junto com o Billy Verdina, passava ao lado do contabilista.
Em resposta Hein Hique emitiu um sonoro e vigoroso arroto.
- Bora lá no cantinho, fazê fuá? – sussurrou lascivamente Donizete Pimenta Aarder no ouvido da Luisa Fernanda que passava por perto com duas garrafas de cerveja.
- Você tem culpa no cartório, teu rabo está preso e seu destino não pode ser outro que o xilindró – rebateu Luisa ao passar rapidamente pelo importunador.
- Culpa? Que mané culpa? Nem no Otariado Geral da Comarca estou inscrito – defendeu-se Donizete.
Sob as vibrações de Dancing in the Dark, de Percy Faith, entraram juntos no salão João Carcanhá Di Grillis e a vovó Bim Latem (aquela que fora durante muitos anos, chefe de gabinete do quase imperador, hoje praticamente aposentado, Jarbas, o caquético).
Bim Latem pensou: “Ih, que festa chata, cafona; coisa de pobre” – logo em seguida, depois de sentar-se à mesa ao lado do Carcanhá Di Grillis, ela sacou da bolsa imensa um exemplar do Best-seller Barangas ao Sol, da escritora francesa Simone Bonvoyage iniciando a leitura.
- Minha nossa! Olha isso! – assustou-se o Fuinho Bigodudo que durante quase meio século exerceu o cargo eletivo (teoricamente transitório) de vereador na cidade.
O doutor Carneiro que não era colecionador de carros antigos, mas que também não deixava nunca seu Ford Galaxie 1969, depois de ter saído da garagem do prédio, onde com uma flanelinha polira o vetusto, entrando no salão de festas, foi logo dizendo:
- Mas essa gandaia de novo? Quem é que aguenta isso?
- Calma seu doutor Carneiro. É só uma comemoração de fim de ano. Logo tudo passa – tentou acalmá-lo Billy Rubina que em seguida, virando-se e apontando o indicador, para o controlador de som emendou:
- Som na caixa, maestro!
E dos alto-falantes soaram As Frenéticas com Abre Tuas Asas. Carneiro, completamente contrariado, tomando o elevador, indo pro seu apartamento pensou “Lorax, cadê o meu Lorax?”
Por volta das 22:15 o doutor advogado João Orlandino Pavaneoso, na condição de síndico administrador, entrando no salão e batendo palmas pra chamar sobre si a atenção dos festeiros foi anunciando com voz feminina:
- Olha a hora pessoal! Pelo regulamento do prédio, está na hora de findar a bagunça. Fim de festa! E não quero nem mais um pio. Quem manda é o síndico. E eu sou o síndico. Feliz ano novo pra vocês.
Ao afastar-se João Orlandino Pavaneoso em cochicho manifestava-se:
- Ih, Ih, Ih... Que festa furreca! Serve mais pra causar problemas do que diversão. A gente somos campeão do mundo, belo! Quebrar a perna desses cretinos não é a pior maldade que podemos fazer, ih, ih, ih.
Luisa Fernanda e Célio Justinho, percebendo a dificuldade em encerrar a comemoração disseram em uníssono:
- Vamos parar gente. Vamos parar tudo antes que saia tiro.
E assim encerrou-se mais um ano naquele famoso bairro, daquela famosa cidade, do Estado de São Tupinambos.