Angelino Ambrulhano e seu irmão Joseph Embrulhanus Ambrulhano, numa tarde de sexta-feira, resolveram ir pro rancho de pescarias que mantinham numa cidade distante de Tupinambicas das Linhas.
Os dois brothers, utilizando uma velha caminhonete Chevrolet D20 branca em péssimo estado de conservação, depois de abastecerem-na com sacolas e mais sacolas contendo macarrão, sacos de 5kg de arroz, pacotes e mais pacotes de feijão, enlatados de salsichas, sardinhas, atum, pacotes de café em pó, duas ou três dezenas de litros de leite, 5 kg de açúcar, um fardo de cerveja em lata, duas garrafas de pinga, 6 kg de frango congelado, cinco peças de queijo minas, pacotes e mais pacotes de biscoitos, leite em pó, fubá e uma infinidade de sabonetes, pastas de dente, desodorantes, sabão em pó, e detergentes iniciaram a viagem.
Durante a saída de Tupinambicas das Linhas Joseph Embrulhanus Ambrulhano ligou o rádio da caminhonete.
- Quem é essa mocinha que fala agora no rádio? - quis saber Angelino.
- Eu sei lá. A voz dela é muito fraca. Pra ter conseguido chegar a esse lugar ou foi por conchavo com o dono da rádio ou por favores que só Deus sabe. Voz de locutor ou locutora ela não tem mesmo – respondeu Joseph.
- Me falaram que é filha do ex-deputado Jaibos Talcott, que também é dono do asilo pros velhos da cidade. Conhece? – continuou Angelino.
- Já ouvi falar. Segundo consta durante o mandato dele como deputado estadual construíram uma barragem à montante do rio Tupinambicas das Linhas. No tempo de estiagem o pessoal lá de cima fecha o curso das águas dos afluentes do nosso rio e o resultado é uma seca geral aqui na cidade. Tem gente que chega a atravessar o nosso rio a pé seco. O presente que ele ganhou pra ajudar a aprovar o projeto de lei que autorizava a construção da barragem foi a concessão da rádio que ele batizou de Adestradora.
Sacolejando muito o caminhãozinho seguia em direção da estrada que os levaria a tal cidade onde, na margem esquerda do rio Sorocaba havia um rancho de pescarias frequentado pelos irmãos e seus amigos.
- Aqui quem vos fala é Laddy Talcott, no seu programa 100 Lengalenga, da nossa rádio Adestradora. Não se esqueça: Laddy com dois dês e Talcott com dois tês.
- Que voz irritante – disse Joseph Embrulhanus ao engatar uma quarta marcha no caminhãozinho queimador de óleo diesel - Desliga essa porcaria!
No silencio os dois seguiram viagem até a estrada que os levaria ao rancho. Depois de duas horas trafegando pela estrada de terra – sem asfalto - pararam defronte a porteira; buzinando, chamaram a atenção de Salvadir Vandich um velho pedreiro aposentado que, por não ter o que fazer, vivia pelos bares do bairro onde morava. Com pena do velho gagá os dois irmãos convidaram-no a morar no rancho. Em troca ele devia fazer pequenos reparos no casebre e capinar o terreno quando a erva daninha crescesse.
Vandich não estava bem com as suas faculdades mentais. A demência da velhice agarrara-o obrigando-o a fazer coisas malucas como, por exemplo, subir nas árvores plantadas nas margens do rio, de onde, imitando macacos, buscava provar pra si mesmo que ainda estava em boa forma, pulando de galho em galho.
- Vai que ocê leva um tombo e aí eu quero ver – avisou um dia Gelino Ambrulhanus.
- Ah, não dá em nada – respondeu, naquela ocasião, o quase octogenário pedreiro de mãos calejadas.
Capengando Salvadir Vandich aproximou-se da caminhonete parada diante da porteira; Iluminado pelos faróis ele a abriu para a dupla que entrou ruidosamente envolta numa nuvem de fumaça de óleo diesel queimado.
Gelino e Joseph, sob os olhares curiosos de Salvadir começaram a descarregar a mercadoria que trouxeram.
Logo que todo o material foi guardado nos armários e na geladeira, Joseph abriu uma garrafa de pinga pondo-a no centro da mesa. Em seguida foi até um cômodo vizinho onde ligou a bomba que tiraria água do poço completando a caixa de água postada no forro da casa.
Ao anoitecer, macarronada com sardinha, frango frito e cerveja serviram de jantar.
Como até aqueles dias não havia ainda TV e nem o recurso dos celulares, os três foram logo para o quarto. Uma cama beliche e outra de solteiro compunham o mobiliário do aposento.
Na escuridão do quarto, sem sono o professor Joseph Ambrulhanus, também formado em economia, pela faculdade local, começou uma conversa:
- Conta aquela história, ô Salvadir, do molequinho que mijou na latinha de comida do indigente.
- Ih, rapaz, aquilo aconteceu faz muito tempo. Eu ainda era solteiro. Foi assim:
- Escuta essa Gelino. Veja que história interessante – cortou Joseph.
- Bom, naquele tempo, Tupinambicas das Linhas nem rodoviária tinha. Eu namorava...
- Naquele tempo o prefeito foi reeleito cinco vezes – interrompeu novamente Joseph.
- É. Sim. Mas deixa eu falar, caramba! – Salvadir já dava sinais de irritação – num dia fiquei sabendo que um indigente tinha feito uma cabana de papelão, e material de lixo reciclável…
- Era só mato naquele trecho da cidade. Mesmo assim apesar da miséria da população os vereadores e o prefeito só trafegavam com carros importados dos Estados Unidos - cortou novamente Joseph a fala do pedreiro.
- Mai, ocê num vai deixá eu falá caramba? – protestou Salvadir Vandich.
- É que tem pernilongo aqui no quarto. Ô Gelino levanta e acende a luz pra gente. Faz o favor – ordenou o professor, diretor de escola e economista Joseph Embrulhanus.
Com a luz acesa, Salvadir Vandich pigarreou e reiniciou a narrativa:
- O camaradinha veio caminhando pelo descampado do terreno e quando viu aquela espécie de barraca, barraco, ou sei lá o quê, donde saía uma fumacinha, aproximou-se entrou e viu que tinha uma lata de leite Ninho cheia de comida. Era uma espécie de sopa aquecida pelas chamas da lenha daquele fogão feito com tijolos soltos e empilhados no chão.
- Ocê num falô, ô Salvadir, do riacho Itapeval que passava defronte ao terreno – atalhou novamente o professor Joseph.
- Oia, se ocê cortá eu novamente eu num falo mais nada. Vou dormi lá fora – protestou o pedreiro quase octogenário.
Da escuridão da noite sons de grilos, sapos e pássaros noturnos compunham melodia inusitada tendo como fundo o ruído das águas do rio.
- Então quando o molequinho terminava de urinar o indigente chegou manquitolando; tinha os olhos arregaladíssimos; vendo a cena, brandiu a bengala, ameaçou, amaldiçoou e, avançando sobre o intruso quis agarrá-lo. O garoto conseguiu se esquivar e saiu correndo pelo descampado, atravessou aos pulos, o riacho Itapeval indo esconder-se na sua casa que ficava distante uma centena de metros.
“O indigente que estava naquele lugar por ter brigado com a mulher, quando voltou pra casa contou o acontecido para os filhos. Um deles era estudante de engenharia e frequentava um centro espírita do bairro central.
“O filho do ‘ligeira’ chocado com o que o pai lhe contara levou o acontecido a uma reunião da irmandade no centro.
“Então, segundo consta, uma entidade vingadora, obsessora, baixando num médium antigo decretou a sorte do moleque: ‘ele vai ser o que o velhote foi: indigente. O que esse menino fez pro velhinho, vão fazer pra ele’”
- Mas, ô Gelino, meu nego, ocê colocou a sobra da janta na geladeira? – quis saber Joseph.
- Oia, vô falá de novo: se interrompê eu, paro de contá o caso – disse irritadíssimo o pedreiro Salvadir.
O voejar das corujas-buraqueiras, seus piados, o farfalhar das asas dos morcegos provocavam temor nos desavisados.
- Então, muito tempo depois, - continuou o pedreiro Salvadir Vandich – quando consultaram o tal espírito obsessor vingador ele confirmou o decreto da vingança dizendo que o xixi vinha dos rins, rim em inglês é kidney palavra que contém o prefixo kid, que é criança. Então as entidades armariam armadilhas usando crianças contra esse moleque sem educação até que ele ficasse bem louquinho. E vejam bem: em todo lugar onde tivesse brim, de, por exemplo, das roupas jeans, esse safado estaria sujeito ao controle.
Gelino Embrulhano, que até aquele momento não dissera nada resolveu arriscar:
- Mas esse centro não era do deputado Tendes Trame e do pessoal do seu partido?
- É claro que era. Dominaram politicamente a cidade por quase meio século. Mas agora vamos dormir. Já é tarde – disse o professor, diretor de escola e economista Joseph Embrulhanus, ao levantar-se para apagar a luz do quarto.
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