A coreica Marina Baldwin, calçando seus sapatos dourados, pensava em ter uma conversa bem séria com a vovó Bin Slave Laten, por isso pediu à sua irmã Revina que a levasse de carro, à casa da velhota balofa.
- Não sei por que você quer, a essa hora, 15 horas, com esse calor todo, ir até a casa da vovó. Por que não espera chegar sexta-feira quando, à noitinha, nos encontraremos conforme vem sempre acontecendo? Que pressa é essa Marina?
- Sabe o que é irmã? Estou com um negócio entalado no gogó faz tanto tempo que tenho até dificuldade pra respirar.
- Vai ver ocê pegou o Covid...
- Nada a ver querida. Já tomei a vacina como todas as outras idosas do trecho – respondeu, com segurança, a Marina fofinha.
- Bom, se o assunto é assim tão importante então vamos indo. Espere um pouco. Vou tirar o carro da garagem.
Revina ingressou no seu Voyage vintage cinza, acionou o motor, soltou o freio de mão e gritou:
- Abre o portão Marina e sai da frente! Ainda não decorei onde fica o breque dessa coisa!
- Está certo que faz pouco tempo que você foi habilitada, mas não quero nem pensar em te ver falando ao celular enquanto dirige. Deus me defenda dessa incúria – falou Marina enquanto se preparava pra embarcar no possante.
As irmãs saíram e, bem devagar, trafegaram pelas ruas do bairro até chegarem à casa da Bin Slave Laten.
- Será que a nona está? – expressou sua dúvida a Baldwin.
- Vamos ver né filhinha? Tenha calma – disse Revina coçando a sobrancelha esquerda.
Ao estacionarem o vetusto defronte a casa da gorducha vovò, as irmãs perceberam que a viatura da nona estava serenamente estacionada na garagem, ao lado duma pequena mesa clara de ferro, circundada por cadeiras também de ferro pintadas com a cor branca. Vários vasos de samambaia pendurados acima e ao lado da porta corrediça envidraçada davam um tom verde e fresco ao ambiente.
Ambas desceram e, diante do portão externo da matrona, acionaram a campanhinha.
Ao cabo de alguns minutos viram a porta corrediça de vidro transparente ser aberta por onde passou a corpulenta e antiga senhora trajando um vestido colorido leve que ia até os pés. Pantufas brancas calçavam os tornozelos grossos; a peitama toda se balançou pra lá e pra cá durante o caminhar da anciã pela garagem.
A velhinha abriu o portão da rua dizendo:
- O que pode ter motivado essa visita inusitada sob esse sol do Saara, minhas amigas?
Revina respondeu:
- A Marina está ansiosa, não consegue esperar por nossa reunião semanal; quer porque quer, falar com a senhora agora mesmo.
- Está tudo bem com você Marina? - perguntou a vovó. Depois murmurando em voz baixa, muito baixa, baixa mesmo expeliu: - canhão de Waterloo!
As três mulheres entraram e na sala de visitas puseram-se a vontade.
Marina começou a falar dum jeito muito singular: falava como os “flanelinhas”, orientando supostos motoristas, que tentavam estacionar seus veículos.
Uma enxurrada de palavras sem sentido, num tom monocórdico, vibrava na sala. As samambaias tremiam e balançavam como se tocadas por ventos fortes vindos de fora.
- Sabe o que é queridíssima vovó? – perguntou Revina tentando responder às expressões faciais de curiosidade e espanto demonstradas pela vovó diante da “chuva” do palavrório da visitante.
- Sim, me diga Revina. Eu sabia que essa mulher não tinha bom juízo – disse a vovó rodando o indicador da mão direita sobre a orelha ao apontar com o queixo a Marina que se distraia observando as pantufas da nona - Mas que estava nesse estágio, pra mim é novidade pura – concluiu ela.
- Quando Marina tinha uns cinco anos foi acometida pela febre reumática que não teve boa cura. Ela então passou a ter uns tipos de movimentos involuntários que os médicos denominam dança de São Vito ou Coreia, cuja sintomatologia evoluiu até os 15 anos quando então os tais movimentos coréicos transformaram-se em verblização incoercível. Na verdade a febre atacou os poucos neurônios que ela recebeu de herança genética de papai e mamãe. Essa pessoa não fica sem falar do mesmo jeito que as pessoas comuns não ficam sem piscar os olhos por muito tempo.
- Fala Marina, minha anciã doidinha, conta pra vovó qual é o seu drama? – perguntou Bin Slaten com a voz semelhante a das velhas benzedeiras residentes nos locais afastados.
- É o que segue preclara anciã de longas lutas, das pegadas infernais, das eleições vitoriosas e da sacanagem geral na paróquia: quando éramos pré-adolescentes e morávamos numa casa bem velha, duma esquina esquisitíssima, eu vi com muito sentimento no meu coração, que havia outra vizinha, bem velhinha; ela estava doentinha e não saía do quarto. Uma vez fui visitar a tal da dona Titi (ela se chamava dona Titi) e da cama, ela começou a choramingar dizendo que “não podia descansar durante as tardes porque havia um fdp dum moleque morador da casa ao lado que chutava, sem parar, aquela maldita bola de capotão no muro do quintal. Parece que o pai dele comprou a pelota só pra me ver sofrer com os chutões. Pode isso dona professora?”
- Mas e sua febre? Melhorou? Você não é metralhadora, mas fala pra dedéu. Você considera isso uma virtude, algo digno de orgulho? Negadinha, o padre, seus parentes, os vizinhos te respeitam por causa disso? – perguntou a nona exibindo dentes brancos enormes da dentadura recente que mandara fazer no colega protético.
- Olha dona nona: eu só sei que quando aquele lazarento insuportável chutou, numa tarde a bola, com a força de não sei o quê, fazendo-a subir sobre o telhado da dona queridíssima Titi, indo cair no meio da rua da minha casa, eu ao perceber a ocorrência, corri feito uma gazela saltitante e, abrindo o portão rústico de tabuas velhas, mantido fechado por uma tranca de pau bem grosso, peguei a bola e, jurando que o morfético não teria sossego durante toda sua existência, entreguei a pelota pro meu pai que, numa tarde, a levou pro bar dando-a a um amigo dele com a recomendação de que a tal bola deveria ser chutada contra aquele jogadorzinho de araque.
Revina completou a história:
- Aquele colega de boteco, do papai, levou a bola pro clube onde o menino, e seus irmãos frequentavam e, durante uma partida deu um chute tão forte que quebrou o bracinho do vizinho otário. Neguinho quase não se formou no primário por causa do bracinho engessado.
- Sim, mas e agora, Marina você ainda gosta de lambari frito? – perguntou a vovó mudando completamente de assunto.
- Gosto sim. Compro no mercado; gosto de lambari empanado com trigo. Mas a senhora sabe que o rio Tupinambicas das linhas, hoje em dia, é um esgoto a céu aberto. Quem come aqueles peixes não pode negar que come também muito cocô, né não?
- Sim, é verdade minha querida colega. Mas veja o adiantado da hora. Desculpem-me, preciso preparar a janta do maridão, entendem? – disse a vovó levantando-se ao encerrar o encontro.
- Ficamos muito agradecidas de nos ter recebido aqui no seu reduto dona Bin Slave. Esse local é tão sossegado, tão tranquilo que parece uma clínica psiquiátrica de repouso, né não? – manifestou-se Revina.
- Não há de quê, minhas queridas. Eu sei como sofrem com essa moléstia. Mas a senhora dona Marina, não deve mais perder tempo: procure logo um especialista em neurologia ou psiquiatria. Sabemos todos que essa tal de febre reumática e suas sequelas, como a Coreia ou dança de São Vito, são doenças muito danosas.
- Vou procurar saber sobre o assunto – disse Revina ao acompanhar Marina que saia para a calçada.
No carro as duas irmãs, sob o efeito do calor, comentavam:
- Que velha chata hein? – inquiriu Revina engatando a primeira e saindo vagarosamente.
- Nem me fale irmã. Pensei que ia melhorar ao contar pra ela esse meu desatino antigo, mas só piorei. Ó vida, viu? Cadê papai? Quero papai!
(revisei o texto às 21:57 - hora de Brasília - neste dia 05 de maio 2021).
Se você gosta do nosso trabalho e quer nos apoiar ficamos-lhe gratos.
PIX – A chave do meu PIX é o meu celular:
55 19 994701551