- Aqui é o seguinte: quando nas reuniões, querem falar de você, na sua presença, sem que você nem imagine o que esteja acontecendo, eles trocam os pronomes pessoais, ou seja, no lugar de “ele” (que seria você ali presente), usam o “eu” – asseverou John Charles Carcanhádigrillis o advogado que, por muitos, mas muitos anos mesmo, fora procurador jurídico do então prefeito (quase imperador) Jarbas, o caquético extremamente testudo, à Lurdona Tonn Inn que, com seu marido Hein Hiquedemorais, consultava o causídico no seu escritório naquela tarde de quinta-feira.
O advogado estranhara a atitude do Senhor Hein Hiquedemorais que se negara terminantemente a sentar-se logo que chegara ao gabinete.
- Não. Fico de pé mesmo - respondera o consulente aos insistentes pedidos do causídico para que se sentasse.
- Sabe o que é seu doutor, meu marido sofre com uma hemorróida inflamada e segundo o nosso médico, a bichinha instalada há muito tempo no fiantã dele, está protrusa, por isso nem pensar em sentar – adiantou-se Lurdona justificando a atitude provavelmente considerada antipática do marido.
- É, mas podem usar também qualquer outro substantivo no lugar do pronome “ele”. Ou trocar o nome da pessoa presente por doutra ausente – continuou Hein Hiquedemorais parado ali de pé, num canto do escritório, como se fosse um vaso de cimento branco, com espadas de São Jorge, nele fincadas.
- Mas veja só que interessante, como funciona a cabeça dos sacripanta: os defeitos, os erros e os equívocos deles (sacripantas) são atribuídos aos antipatizados, enquanto que as vitórias, sucessos e feitos daqueles (antipatizados) de quem eles não gostam, são narrados como se fossem deles, os hereges odientos. Pode isso seu Hein? Pode isso dona Tonn Inn?
Nesse instante, o interfone tocou. O advogado atendendo soube que eram mais duas outras pessoas solicitando consulta.
- A senhora dona Luisa Fernanda, a gerente administrativa do Banco UN (Usura Nacional), juntamente com seu esposo Dr. Célio Justinho, desejam fazer parte da reunião – comunicou o advogado aos presentes.
- Ah, sim, seu doutor, são minha filha e genro. Permita que entrem – falou Hein Hiquedemorais tossindo com a boca fechada logo depois dum acesso de soluços. “pena que não posso peidar aqui, se não, arreliava já, meu amigo” – pensou timidamente o seu Hein Hiquedemorais.
Ao entrarem Luísa, tomada por uma sofreguidão inusual, foi falando aos jorros:
- Gente, boa tarde. De quem é aquele Poodle branco, emporcalhado que estava tendo acessos de epilepsia bem ali no estacionamento do escritório, justamente quando chegamos?
- É um Poodle Toy banquinho, mas que está com os pelos compridos e sujos? – quis saber o advogadão.
Depois da confirmação do casal recém-chegado Carcanhádigrillis completou:
- É um cão vadio, vagabundo. Ele gosta de lamber a boca dos bêbados caídos nas calçadas. Ele prefere os que dormem defronte a padaria Broa de Mel. Conhecem? Fica bem aqui pertinho. O bicho passou a ter acessos depois de se empanturrar com as babas dum pinguço sofredor desse mal epiléptico.
A temperatura na sala aumentava quando então o profissional aplicador do Direito, levantou-se ligando o ar condicionado. Vendo a secretária que, abrindo a porta anunciava a chegada da vovó Bin Slave Latem a mais terrível, temidíssima estrategista das guerrilhas, quizilas, mal-entendidos, confusões, rixas, desordens, fuxicos, fofocas e destemperos existentes entre os moradores do bairro Vila Dependência, sentiu ele, o advogado, um arrepio de medo que lhe eriçou os pelos todos do corpo.
- Ah, é a Bin Latem? Pode mandar entrar dona Bruna, faça o favor.
A vovó foi entrando com passos lentos que lhe permitiam o excesso de peso.
- Boa tarde meu povo. Boa tarde minha gente. Tudo bem com vocês todos?
- Tarde vó – responderam os presentes numa só voz.
O pessoal foi se afastando, dando passagem, para a nona que vinha balançando a peitama e o bundão imensos, dum lado pro outro.
- Gente, estou tão cançada... Essa pandemia... Esse calor... Credo! Mas é o seguinte pessoal – começou a falar a majestosa figura: - Vocês se lembram daquela menina, meio maluquinha, que tem uma lanchonete vizinha da casa dela e que num dia desses, avançando a placa pare, invadindo a via preferencial dum velhote, o atropelou mandando-o pra Santa Casa por 20 dias?
Diante do sinal positivo feito com um meneio de cabeça de todos os presentes a antiga e obesa pessoa (funcionária pública aposentadíssima de longa data) continuou:
- Então... O pai e o namorado dela gastaram uma baba preta de honorários de advogado pra provar que ela estava certa, que na verdade quem tivera culpa pelo acidente fora a própria vítima, que deveria frear sua bike antes de chocar-se contra o fonfom dela, mas apesar disso tudo a infeliz sente-se muito culpada e toda vez que ouve uma buzina, uma acelerada mais forte das viaturas que passam na rua, defronte a sua casa, a pandega passa tão mal que pensou até em tirar a própria vida. Portando eu estou aqui pra gente bolar uma simpatia a fim de que a meliante atropeladora, que invadiu a preferencial alheia, deixe de se sentir tão miseravelmente culpada e doente. Vocês têm alguma ideia?
Lurdona Tonn Inn levantou o dedinho indicador da mão direita como se fosse uma criança da sala de aula do curso de alfabetização do grupo escolar dizendo:
- Gente, é muito fácil. Essa cretina não parou onde deveria parar não é verdade?
A maioria respondeu positivamente.
- Então... - continuou a esposa do eclético, famoso, riquíssimo, ganhador da sena milionária, Hein Hiquedemorais amante das maminhas e chuletas dos churrascos dos finais de semana na borda da piscina de águas turvas – É só a gente colocar ela parada numa esquina, mesmo sentada e, quando vier alguém ela ao invés de levantar-se e passar na frente dos outros deve esperar pelo menos a passagem de no mínimo umas 10 pessoas. Eu disse dez pessoas entenderam?
- Nossa, que sacada de gênio dona Lurdona. Se fosse o final duma partida de tênis, no torneio de Wimbledon, a senhora venceria fácil, fácil.
- A gente “fazemos” o que podemos. A gente não “fazeria” mais e melhor por falta de incentivo do governo – disse tomada pelo orgulho, toda cheia de si, a velhota baixinha.
E assim foi feito. De um jeito ou de outro, convenceram a doidíssima imprudente, negligente e imperita motorista meliante, atropeladora de velhinhos corocas, a ficar parada durante os 10 terceiros domingos de cada mês, numa das esquinas de sua casa, por pelo menos, três horas seguidas, esperando que 10 pessoas passassem à sua frente.
Gelino Embrulhano, Zé Laburka, Donizete Pimenta, Dani Arruela e Delsinho Spiroqueta, quando desciam a pé, numa ensolarada manhã de outono, pro centro da cidade, ao passarem por aquela moça idiotizada, sentada na mureta baixa da casa da esquina, simulando falar ao celular, tendo nas pontas das guias dois vira-latas, não deixaram de comentar o fato de que ao longo do reinado do Jarbas, Tendes Trame, Zé Lagarto, Vovó Bim Latem, Fuinho Bigodudo e Marina Baldwin, nunca houve uma proliferação tão grande de insanos durante toda a história de Tupinambicas das Linhas.
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